Complexo do Curado aposta em leitura para ressocializar

Antônio Assis
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Biblioteca em presídio reúne mais de 500 títulos
Foto: Rafael Furtado

Luiz Filipe Freire
Folha de Pernambuco

O Complexo Prisional do Curado, no Recife, vem sendo cenário de uma aposta silenciosa, de frutos demorados, mas que pode dar algum sen­­tido, no futuro, à verdadeira ressocializa­ção, como se espera que ela aconteça. A remi­ção pela leitura está em prática há um ano nas três unidades do conjunto de presídios. Quando começou, em outubro de 2016, para cada leitura mensal de um livro, quatro dias eram reduzidos da pena de quem participava do projeto.

A iniciativa está sendo bem avaliada e levou a Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres), responsável pela administração das unidades prisionais de Pernambuco, a publicar uma portaria, neste mês, elevando para sete o número de dias a menos por título lido. A ideia costuma mobilizar palmas de defensores do desencarceramento responsável, mas também demanda ações integradas, já que, sozinha, parece não bastar num complexo que abriga três vezes mais detentos que a capacidade e que ainda é alvo de medidas provisórias internacionais por violações dos direitos humanos.

Por razões de segurança, a entrada no Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros (Pjallb), um dos que compõem o Curado, é burocrática. Mas, poucos passos após a passagem pelos portões, quase é possível esquecer por alguns minutos que se está em uma unidade prisional. O pátio ao ar livre é limpo e tem muretas conservadas. As paredes estão repletas de mensagens encorajadoras, a maioria, versículos da Bíblia. Detentos interagem com quem chega em um clima de aparente tranquilidade.

Poucos metros à frente, surge uma espécie de quartel-general da remição pela leitura. É a Biblioteca Jardim do Conhecimento, entregue reformada em agosto deste ano. Pelo menos uma dezena de presos ocupava as mesas, com livros nas mãos, quando a reportagem chegou. Estavam lá desde as 8h. O expediente da biblioteca termina às 17h. Apesar da existência do novo espaço, também é possível ler nas celas, mas não é confortável, vazio e silencioso como entre as estantes.

A biblioteca tem mais de 500 títulos, mas só 175 têm parecer favorável da comissão responsável pelo projeto para serem considerados como válidos na redução de pena. Em geral, envolvem temáticas que não estimulam a violência. Os que mais saem são os romances (44%), seguidos de ficção (15%), literatura (13%), biografias (6%), contos (5%), crônicas (5%), autoajuda (4%), história (3%), filosofia (3%) e poesias (2%). Como só um livro por mês é computado na remição, o detento que participa do projeto pode ter 84 dias diminuídos da pena, por ano, considerando a nova regra de sete dias a menos por obra.

Para que o processo tenha validade, os presos com ensino fundamental completo ou incompleto têm que fazer um resumo de cada livro lido. Os que têm ensino médio ou superior, completo ou incompleto, fazem resenhas. Por meio de uma tabela de atribuição de pontos, é avaliado se eles conseguem identificar o tema do texto, sintetizar ideias e expressar opiniões sobre o conteúdo, usando léxicos adequados à argumentação. De acordo com a Seres, 635 reeducandos já participaram da iniciativa. A média de aprovação é de 60%.

“Notamos que isso está modificando o dia a dia da unidade. Os reeducandos têm se interessado cada vez mais, mesmo que apenas um livro seja validado por mês. Muitos leem bem mais que isso”, afirma a gerente de educação e qualificação profissional da Seres, Edvany Oliveira.

Uma “isca” tem sido outro projeto, o Liberdade de Leitura. Trata-se de um carrinho itinerante repleto de livros que, diariamente, percorre os pavilhões do Pjallb. Detentos previamente inscritos podem pegar um livro e lê-lo em até 15 dias, com possibilidade de renovação desse prazo. Os títulos não têm validade para a redução de pena, mas acabam sendo uma forma de estimular os reeducandos a entrar no projeto e de combater o ócio.

“Trouxemos a ideia de que quem lê não perde nada, de que o conhecimento é a única coisa que não se tira de uma pessoa. O carrinho é um jeito de atrair para a remição, mas também de levar literatura para reeducandos que, por questão de se­gurança, não podem chegar até a biblioteca”, detalha o gerente do Pjallb, José Sidnei de Souza.

A remição pela leitura começou a se espalhar pelo Brasil a partir de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicada em 2015. Antes, já existia no Paraná, com resultados exitosos. Em Pernambuco, a Seres pretende expandir a iniciativa para além do Curado, mas ainda esbarra no número limitado de livros em seu acervo. Os títulos almejados têm como autores Rubem Braga, Mauro Mota, Raimundo Carrero, Paulo Coelho, Luís Fernando Veríssimo, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade e Augusto Cury, entre outros. A lista completa para quem tiver interesse em doar pode ser encontrada no site da Seres. A entrega pode ocorrer na sede da secretaria, que fica na rua do Hospício, 751, no bairro da Boa Vista, no Recife.

O promotor de Execuções Penais Marcellus Ugiette defende a remição pela leitura desde 2012, a partir de exemplos que já conhecia. Ele tem certeza de que, a despeito das dificuldades iniciais, a tendência é de que o projeto chegue a outras unidades de Pernambuco. O promotor alerta, entretanto, que a reinserção social só acontece se outros elementos forem considerados.

“Não adianta o reeducando ler e continuar usando drogas e tendo acesso a armas dentro da cadeia. Além da leitura, também há remi­ção por estudo, por trabalho, que são cumulativas. Ou seja, estamos fazendo com que o preso saia mais rápido da prisão, mas o que estamos fazendo para o depois? É preciso garantir qualifica­ção profissional, disciplina, tratamento digno dentro da cadeia. Tudo precisa estar alinhado. A leitura não funciona sozinha”, diz.

Busca por um futuro

Há um ano e sete meses, José Lu­­ciano do Nascimento teve sua rotina reduzida ao que acontece entre os muros do Complexo do Curado. O homem de 41 anos, que passou a maior parte do tempo trabalhando com a venda de materiais esportivos no Norte e Centro-Oeste do País, estava em Pernambuco havia apenas cinco meses quando caiu em desgraça. Foi acusado de um crime que ele garante não ter cometido.

Os primeiros meses demandaram apoio psicoló­­gico dentro da prisão. Luciano, que já tinha passagem pela polícia em Mato Grosso, fechou-se na soli­­dão. Até que a oportunidade da leitura, que ele diz ter sido rara antes, surgiu. Em poucos meses, já percorreu as páginas de 11 obras. A que mais marcou foi O Misterioso Homem de Macapá, de José Américo de Lima, que atiçou-lhe a imaginação. “Fala de uma casa miste­riosa que, pelo que dizem, existe de verdade lá. Fiquei com vontade de, um dia, quando sair daqui, ir conhecer”, relata o preso, que só estudou até a 8ª série.

A espera até uma audiência de instrução marcada para fevereiro tem sido atenuada pelos livros. “É algo que me ajuda a esquecer, junto com o artesanato que eu faço. Conversa de preso não dá futuro. Acho que ler é o que vai me dar alguma coisa”, conclui.

Em outra mesa da biblioteca, Rodrigo (nome fictício), 58 anos, concentra-se em uma biografia do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Está no começo. Diferentemente de Luciano, ele terminou o Ensino Médio e tinha contato frequente com a leitura fora da cadeia. Tentou faculdade, trabalhou com advogados. Ler na prisão, ele confessa, tem sido unir o útil ao agradável. Condenado a dez anos por estupro, o detento deve progredir de regime em março, quando completar um sexto da pena. Nas quatro resenhas que já apresentou aos avaliadores da remição pela leitura, foi aprovado em todas, o que também deve resultar em alguns dias a menos de condenação. 

Só atrás das grades é que Rodrigo leu Dom Casmurro. Ele conta que a obra de Machado de Assis foi a que mais lhe marcou nesse período. “Ela tem um paralelo com a minha história, não pela desconfiança que o Bentinho tinha da mulher dele, mas porque conheci minha esposa muito jovem também, com 13 anos. No mais, acho que ele foi muito injusto com ela [Capitu], uma coisa meio sem sentido”, reflete.

O homem, que tem quatro filhos, todos morando no Recife, recorre a um argumento desconcertante para desenhar seus próximos dias no Pjallb. Ele não quer sair tão cedo, mesmo com tudo caminhando para sua progressão em pouco tempo. “Quero mesmo poder ficar. Lá fora, tive tudo e a vida não sorriu para mim. Aqui, estou há um ano e dois meses e estou conseguindo tirar o melhor do que se tem de pior”, confidencia.

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