É possível acabar com um mundo de corrupção?

Antônio Assis
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Deltan Dallagnol - Procurador da República

Era uma vez um país, chamado Brasil, em que, no papel, todos eram iguais, mas, na realidade palpável, uns eram mais iguais do que os outros, desde longa data. Há 350 anos, um homem, famoso por seu desejo de Justiça, escreveu naquele país: “Não são ladrões só aqueles que furtam carteiras, bolsas ou fazem arrastões. Os ladrões que mais própria e dignamente merecem esse título são os governantes de diferentes esferas ou poderes que, de modo dissimulado e valendo-se de sua posição, roubam e despojam a nação. Aqueles ladrões de galinha roubam um homem; estes ladrões do colarinho branco roubam as cidades, os estados e o país. Aqueles furtam debaixo de seu risco; estes sem qualquer temor, nem perigo. Aqueles, se roubam, vão para a cadeia; estes roubam, punem a sociedade e garantem sua própria impunidade.” (Pe. Antonio Vieira, Sermão do Bom Ladrão, 1655, adaptado pelo autor).

A corrupção, naquele Brasil, persistiu em larga escala por longos 350 anos. Ela aconteceu por tanto tempo, e de modo tão intenso e público, que passou a ser considerada normal. Não era reconhecida como um problema relevante. Era considerada tão banal a ponto de os cidadãos escolherem como representantes, por mais de uma vez, pessoas que se identificavam como quem “rouba, mas faz”. Não nos representam, mas nos representaram. Tudo isso levou a uma completa descrença no futuro, nas instituições e no país. Seus cidadãos, que eram pessoas que se identificavam como quem dava um jeito em tudo, por incrível que pareça, acreditavam que seu país não tinha jeito. Os cidadãos eram prisioneiros de sua própria desesperança.

Naquele mesmo país, 350 anos mais tarde, aconteceram coisas extraordinárias. Ricos e poderosos que roubavam o país em larga escala foram levados a julgamento perante a Justiça. As prisões dos príncipes corruptos do poder econômico e político, executadas para proteger a sociedade dos sucessivos saques, libertaram a esperança. E a esperança é poderosa. No flanco aberto no combate contra a grande corrupção, promotores de justiça ergueram uma bandeira de 10 medidas para que o povo não fosse mais espoliado por corruptos e corruptores. Contudo, eu não me refiro aqui apenas aos promotores de justiça que têm cargos públicos. Eu me refiro especialmente a cidadãos que, tendo cargos públicos ou não, buscam justiça como expressão de seu sonho por um país melhor. Esses cidadãos são os verdadeiros e maiores protagonistas da luta por mudanças.

Essas 10 medidas são propostas sólidas edificadas tendo por base estudos sobre como inibir a corrupção feitos pelos maiores especialistas do mundo, e sobre as bases da experiência de décadas do Ministério Público Brasileiro, instituição defensora da democracia e dos direitos humanos. As medidas são apoiadas por mais de 650 entidades públicas e da sociedade civil organizada, muitas das quais vinculadas a juízes ou ao Judiciário, conhecedoras do direito e imparciais. As propostas são, nesse sentido, uma verdadeira ponte de ouro entre a indignação e a transformação, que passa por cima das águas turvas do cinismo e da descrença. Essa campanha contra a corrupção rompe o círculo vicioso em que indignação gera reclamação e vice-versa, um círculo perverso que produz descrença em nossas instituições. A esperança, agora livre, faz-nos ver que o passado explica o nosso presente, mas não determina o nosso futuro. Dá-nos poder para pegarmos algo ruim e transformarmos em algo bom. Abre uma janela de oportunidade, dentro de uma história de 350 anos, para fazermos, agora, diferente e melhor. O país do jeito tem jeito.

É preciso, contudo, que nós, brasileiros, unamo-nos em apoio a essa campanha, e que perseveremos. O fim da escravidão na Inglaterra foi “um dos primeiros movimentos populares bem-sucedidos da história moderna” (segundo Leandro Narloch no Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil). Os abolicionistas se organizaram distribuindo panfletos, fazendo abaixo-assinados e protocolando na Câmara dos Comuns petições que equivaliam aos nossos projetos de lei de iniciativa popular. Foram protocoladas 170 dessas propostas legislativas, em média, por ano, entre 1788 e 1800. Até a abolição da escravatura em 1833 foram protocoladas mais de cinco mil petições com centenas de milhares de assinaturas. É, sem dúvidas, difícil mudar situações de injustiça históricas, sobretudo quando grandes interesses econômicos e políticos estão envolvidos. Mas é sim possível. Cabem muito bem aqui as palavras de Max Weber: “o homem não teria alcançado o possível se, repetidas vezes, não tivesse tentado o impossível.” E acrescento: se não tivesse tentado, com perseverança, o impossível.

Se é difícil mudar porque há um mundo de corrupção, devemos lembrar que mesmo um mundo pode ser movido com uma alavanca e um ponto de apoio. Temos como ponto de apoio uma conjuntura extraordinária de esperança, gerada por grandes operações de combate à corrupção, e de conscientização da população. A mesma corrupção, antes banal, agora é considerada pelos brasileiros, pela primeira vez, segundo pesquisa do Datafolha, o maior problema do país. Existe uma consciência crescente de que a corrupção impacta outros problemas considerados centrais, como educação, saúde e segurança. Temos como alavanca propostas de mudanças consistentes, como as 10 medidas contra a corrupção. Precisamos, agora, todos, nos unir para mover, juntos, essa alavanca, mostrando que o Brasil não é terra de ninguém, e muito menos é propriedade privada de corruptos e corruptores. É uma terra de brasileiros e brasileiras que querem Justiça. E nós, como sociedade, vamos alcançá-la.

Nada melhor do que o fim de ano e o natal, que representam esperança e renovação, para colocarmos tudo isso em prática, assinando embaixo das 10 medidas e colhendo assinaturas de familiares e amigos. Contra a corrupção e a impunidade, uma assinatura vale mais do que mil reclamações. É fácil participar. Basta acessar a página das 10 medidas na internet (www.10medidas.mpf.mp.br) e imprimir o formulário. Encerramos o ano com o desejo de que não apenas tenhamos todos um feliz natal, mas possamos também construir um país mais justo em 2016.

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