Panelaços brasileiros foram inspirados em protestos ocorridos em todo o mundo

Antônio Assis
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Chico Buarque foi campeão de citações em cartazes e camisetas
Foto: Sérgio Bernardo/JC Imagem

Mariana Mesquita
JC Onlin

“Ouvi a cidade de noite batendo as panelas”, cantou Chico Buarque em 1984, diante das passeatas que pediam eleições diretas para presidente. Três décadas depois, as frigideiras se voltaram contra aqueles que antes se manifestavam pelo fim da ditadura. Nada mais condizente: a história mostra que os utensílios de cozinha nunca obedeceram a ideologias políticas. 

Os primeiros panelaços registrados aconteceram no Chile, em dezembro de 1971, contra o presidente socialista Salvador Allende. Ao mesmo tempo em que as panelas vazias denunciavam a falta de abastecimento e alto custo dos alimentos, caracterizavam o protesto como “feminino” e evitavam eventuais confrontos com outros grupos. Entre 1986 e 1989, porém, os chilenos retomaram as vasilhas para se posicionar contra o substituto de Allende, o ditador de extrema direita Augusto Pinochet.

O Uruguai teve seus “cacerolazos” (do espanhol cacerola, ou seja, caçarola) entre 1982 e 1984, quando ainda vivia na ditadura militar. Em 2002, no auge de uma crise econômica, os protestos foram revividos. E a Venezuela, na década de 1990, pegou nas frigideiras para reclamar do presidente Carlos Andrés Perez. Houve registros também em 2002, 2004, 2006 e 2011. Já em 2012, foi a vez da Colômbia ir às ruas. 

Na Argentina, que é o País mais lembrado quando se pensa nesse tipo de protesto, as primeiras manifestações aconteceram em 1996, contra a política econômica de Carlos Menem. Mas o destaque mundial aconteceu entre 2001 e 2002, quando os panelaços aconteciam quase diariamente. Em 2012, um ato contra a presidente Cristina Kirchner, levou às ruas mais de um milhão de pessoas. 

Engana-se, porém, quem pensa que este tipo de manifestação é exclusiva da América Latina. Houve panelaços na Espanha, em 2004, na Islândia, em 2009, no Canadá, em 2012, e em vários outros países.

“Os panelaços podem ser interpretados como processos comunicacionais, pois expressam sentimentos, emoções”, diz o cientista político e jornalista Juliano Domingues, professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Um dos pontos que Juliano destaca é que, em nosso País, a recente estratégia do panelaço parece ter sido adotada por grupos que, tradicionalmente, não tinham o hábito de manifestar suas demandas publicamente e que não estão vinculados a entidades da sociedade civil organizada. “O caráter individual e atomizado da manifestação parece predominar. Bater panelas a partir de varandas de apartamento pode ser interpretado como uma forma relativamente cômoda de expressar determinadas insatisfações. Mas isso, porém, não deslegitima os episódios dessa natureza”, avalia.

Elementos simbólicos são resgatados de passeatas do passado

Gente vestindo amarelo, como em 1984. Jovens de cara pintada, como em 1992. Todos cantando ou trazendo cartazes com trechos de hits como “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, “Vai Passar” e “Cálice”, de Chico Buarque, e “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso. As imagens do último fim de semana, durante os protestos em todo o Brasil, não devem ser vistas com estranhamento, na opinião do professor de comunicação da UFPE, Thiago Soares. “A apropriação de símbolos é algo comum e esses elementos não foram escolhidos por acaso. Fazem parte de um repertório afetivo que os brasileiros construíram, da memória que temos de como seria a ‘música de passeata’, e que se torna a referência onde se ancorar”, explica. 

Jeder Janotti, que também pesquisa música e comunicação no mesmo curso e universidade, destaca que as composições surgiram numa época diferente, e que desde então tiveram sua carga política inicial esvaziada. “Geraldo Vandré foi tão repetido em tantos contextos distintos, que ganhou novos significados. E para quem é de classe média-alta, Chico Buarque faz parte de um repertório rotineiro”, exemplifica. Para ele, contudo, determinados elementos tentam dar “uma carga de poder simbólico” às manifestações. “Eles são escolhidos para tirar um pouco da sensação de que o protesto seria apenas de direita”, analisa.

“Vai Passar e Pra não dizer que não falei das flores são as maiores canções de protesto brasileiras. Pode ser que a maioria das pessoas que estavam lá, cantando, não reflitam sobre a carga histórica que aquelas obras têm. Mas, certamente, as forças que organizaram estes movimentos sabem muito bem o que estão fazendo. A escolha não é um acidente”, alerta a professora Suzy dos Santos, do curso de comunicação da UFRJ.

O cientista político Juliano Domingues acredita que estas músicas, de certa forma, também representam uma crítica mais universal à opressão. “São muitas as variáveis que interferem na construção dos significados. É esperado e legítimo que grupos se apropriem, de forma intencional ou não, de símbolos historicamente ligados a um suposto outro lado, numa batalha não necessariamente movida por aspectos ideológicos”, finaliza.

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