O aniversário de dois livros marcantes de Raimundo Carrero

Antônio Assis
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Diogo Guedes
JC Online

Em um mesmo ano, a celebração de duas narrativas, duas facetas de uma mesma obra. Em 2014, o escritor pernambucano Raimundo Carrero comemora os 30 anos da publicação da novela A dupla face do baralho: confissões do comissário Félix Gurgel e os 25 do romance Maçã agreste, ao mesmo tempo. Tanto para ele quanto para pesquisadores da sua obra, os dois livros são pontos fundamentais para se entender a sua trajetória literária.
O primeiro deles ainda está sob a influência do movimento armorial, referência para ele até hoje, enquanto o segundo é um ponto fundamental para toda sua produção posterior. É em Maçã agreste, republicado em edição digital a partir do dia 20 deste mês, pela Cesárea, que nascem os personagens e as preocupações que vão se repetir e se transformar nos anos seguintes, até o seu mais recente livro, Tangolomango.
A epígrafe do terceiro romance de Raimundo Carrero, A dupla face do baralho, cita Tolstoi para lembrar que é difícil viver “à beira do abismo”. Seus personagens sempre parecem estar nesse estado, ainda mais o comissário de polícia Félix Gurgel, que narra seu passado ao longo da novela.
É uma espécie de expiação que move o aposentado, perto da beira da morte. A sua história é perpassada por uma série de outras narrativas que se passam na antiga delegacia e no restante da sua trajetória, com idas e vindas. “Impressiona como Carrero entrelaça as inúmeras narrativas, antecipa e omite fatos, mantendo o equilíbrio necessário entre a interioridade atormentada e o suspense narrativo”, analisa a doutora em Letras, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Cristiane Teixeira de Amorim, na sua tese Raimundo Carrero, a estética do redemunho.

INTROSPECTIVO
Para o escritor de Salgueiro, o título é um marco importante na sua obra, que destaca o momento em que começa de fato o seu amadurecimento literário. “A dupla face do baralho é uma obra mais introspectiva, é um reflexo de um comissário de polícia sobre sua vida no interior. É sobre o questionamento, o expiação da culpa, uma revisão dos muito erros e dos poucos acertos”, comenta. “Foi nele que comecei a entrar nos plenos domínios da escrita. Bernarda Soledade e As sementes do sol são ótimos livros, mas, tecnicamente, ele é superior, tanto que foi a minha primeira obra a ser traduzida, com versão para o inglês feita por Arthur Brakel”. A tradução, porém, nunca foi publicada, para frustração do escritor.

É a primeira vez que aparece na obra de Carrero um narrador que está completamente envolvido da história que conta: o formato de confissões faz de Félix um desses personagens que apresenta uma trama ao leitor, mas que falha em ser objetivo e se revela ainda mais nas próprias entrelinhas. O livro é construído através do tema da culpa – fruto das angústia do próprio autor com a vida desregrada que levava – e por um susto: um enfarte do pulmão. Em um sonho logo depois, um amigo veio lhe dizer que teria só 15 dias de vida. A partir daí, tentou escrever uma novela, A dupla face do baralho, que começa com uma frase sintomática: “Eu estou aqui sentado na calçada da minha casa, vestido todo de branco, esperando a morte”. O livro durou mais do que 15 dias para ser feito, claro, mas reflete esse ponto de partida.
Para o crítico literário Rafael Monteiro, que estudou a loucura nas obras de Carrero na sua dissertação de mestrado, A dupla face do baralho é um livro importante para se entender a trajetória do escritor. “É um dos últimos momentos em que Salgueiro está em foco na sua literatura. Aqui, Carrero já escreve como um nome respaldado, com quase dez anos de carreira”, comenta o pesquisador. Outra singularidade está explícita já no título: é a primeira vez que o autor trabalha a questão da duplicidade nos seus personagens.
“Félix Gurgel é um homem que resgata sua vida. Ele teve a oportunidade de fazer e acontecer, foi cruel até. Só tem a possibilidade de se humanizar quando conhece Camilo, filho de uma mulher que se torna sua amante, que é meio ‘amalucado’ e foi até vítima de Gurgel. É quando ele chega a se arrepender”, descreve Rafael. Para ele, o foco do livro é o poder e os desmandos que surgem com ele.
INICIAL
A dupla face do baralho ainda se localiza numa fase mais armorial da literatura de Carrero – ainda que o autor faça questão de lembrar que nunca abandonou o movimento criado por Ariano Suassuna. “As pessoas confundem o regionalismo com o armorial, mas é muito diferente. O regionalismo é conteudistas, passa muito pela sociologia. O armorial busca se ligar à estética, pretende a criação de uma obra artística de alto nível a partir de fontes populares de todos os lugares do País”, conta o escritor de Salgueiro.

Para Rafael, a relação do armorial com a obra inicial do autor se vê até na organização do volume O delicado abismo da loucura, feita por Marcelo Pereira, editora desde Caderno C, que junta a novela com os dois primeiros livros de Carrero. “São obras mais sertanejas, de pegada armorial. É depois delas que ele vai seguir outros caminhos no romance”, atesta.
MAÇÃ AGRESTE
“Maçã agreste é o big bang para as obras que faço até hoje”, define o escritor Raimundo Carrero sem meio termos. Lançado em 1989, foi o sétimo romance publicado, mas uma marca definitiva para a sua produção atual: é dele que nasce a família inaugural que se deriva nas narrativas de Somos pedras que se consomem (1995), O amor não tem bons sentimentos (2007), Minha alma é irmã de Deus (2009), Seria uma sombria noite secreta (2011) e Tangolomango (2013).
Ernesto e Dolores, presentes no livro, e seus filhos e sobrinhos compõem o corpo principal de personagens das obras de Carrero posteriores. Não bastasse ser o início da genealogia, é uma de suas produção preferidas. “Maçã agreste é o livro que considero o marco da minha escrita adulta. São mais de 400 páginas em que abordo os personagens em diferentes blocos, com cada um deles responsável em uma parte”, descreve o autor.
É por esse motivo que Rafael Monteiro, pesquisador da obra do salgueirense, aponta o título como fundamental para quem quer entender o trabalho de Carrero. “Maçã agreste marca, ainda, a vinda das suas narrativas para o centro urbano, deixando Salgueiro, que era uma coisa que ele temia”, conta o crítico, que estudou, em seu mestrado, a loucura na produção do pernambucano. Essa transição do Sertão para a cidade havia já começado em Viagem ao ventre da baleia (1986).
A recorrência de personagens nos livros seguintes, segundo Rafael, é um dos dados que Carrero captura de um dos seus autores favoritos, o americano William Faulkner. Uma reverência explícita na obra é Quincas Borba, de Machado de Assis, que tem trechos transcritos pelo personagem Jeremias.
“A influência de Machado em Maçã agreste é imensa e proposital”, Carrero confessa. Na sua tese de doutorado sobre o autor, Cristiane Teixeira mostra que, assim como Machado não cria nomes (e trabalha esse tema dentro dessa obra) por acaso, o escritor pernambucano transforma essa parte do processo de criação de um personagem em informações sobre eles. Os dois livros trazem suas Sofias singulares: o namorado de Sofia em Maçã agreste, Jeremias, compara a personagem machadiana com sua amante. “E assim como Machado tantas vezes nomeou seus seres de papel de forma a fornecer pistas sobre as naturezas, comumente encobertas por capas de seda, Carrero também assim age, sobretudo pelas intrincadas trilhas intertextuais”, explica o trabalho acadêmico.
Em um romance que trabalha o próprio significado dos nomes dos personagens, a origem de cada um deles é importante. O patriarca, Ernesto, é uma homenagem ao escritor americano Ernest Hemingway. “Dolores é uma mulher sofrida, que não pode pensar justamente pela dor que sente; ela não se questiona, não pondera”, comenta Carrero. E explica como isso se converte em elemento da prosa de Maçã agreste: dentro do universo da personagem, ele não usa nenhuma vez as construções adversativas; ela não hesita em nada do que faz ou diz.
“Quando Maçã agreste saiu, a José Olympio, a editora do livro, já estava afundada em dívidas e não conseguiu distribuir o livro nacionalmente como deveria. Apesar disso, ele recebeu excelentes resenhas. O problema é que, na época, o interesse dos críticos eram por obras políticas, para falar sobre o fim da ditadura. Edilberto Coutinho fez um artigo pro jornal O Globo, na época, dizendo que com o livro de Pernambuco, terra da poesia, finalmente tinha encontrado o seu romancista”, recorda Carrero.
Até por esse contexto, o relançamento é encarado com otimismo. “Acredito que o livro finalmente vai poder ser lido por aqueles que conhecem a minha obra mais recente. É o início de uma família que vai viver mais seis romances”, ressalta o autor. Com a edição virtual pela Cesárea – o próprio Carrero confessa que não tem mais uma cópia da obra impressa em casa –, ele espera que seja possível entender melhor sua produção recente.
Nessa origem explosiva e nas aparições e reaparições dos seus principais personagens nos últimos anos, Carrero diz que esconde uma das chaves da sua obra: todas elas se juntam para formar uma só. Há 25 anos, portanto, o autor vem escrevendo, com precisão e inovações, seu legado literário.

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