Arquitetura hostil: a anatomia da cidade proibida

Antônio Assis
0

Na cabeça de quem instala trambolhos metálicos num banco de praça, pinos pontudos numa mureta ou até floreiras em frente a uma vitrine, o que se quer é evitar que mendigos e transeuntes cansados ocupem indevidamente locais destinados à circulação, a compras, e possam representar, além de danos à imagem dos lugares, ameaças à higiene e à segurança. No entanto, o resultado dessas ações é o bloqueio à plena e saudável utilização dos espaços públicos e daqueles na fronteira entre o privado e o público, o que piora o padrão da cidadania.

O problema é antigo, mas esses elementos arquitetônicos hostis passam quase despercebidos por muita gente, como se fizessem parte do que é esperado na paisagem das cidades. Não fosse o insólito protesto realizado no dia 2 de fevereiro último pelo padre Júlio Lancelotti em São Paulo, a questão continuaria enevoada aos olhos do grande público e da classe política. Coordenador da Pastoral do Povo de Rua da arquidiocese da capital paulista, o padre utilizou-se de uma marreta para quebrar parcialmente os blocos de pedras pontiagudas afixados pela prefeitura na parte de baixo dos viadutos Dom Luciano Mendes de Almeida e Antônio de Paiva Monteiro, localizados na Avenida Salim Farah Maluf, Bairro do Tatuapé, Zona Leste.

Lancelotti não teve dúvidas quanto ao propósito dos paralelepípedos: afastar dali as pessoas em situação de rua que eventualmente quisessem ocupar os dois vãos como abrigo ou ponto de parada. Ele tachou a medida de “higienista”.

Protesto do padre Júlio Lancelotti contra a instalação de pedras sob viaduto em São Paulo (fotos: Reprodução/Instagram)

Com a repercussão do ato nas redes sociais e na imprensa, a prefeitura alegou que, sem autorização superior, um funcionário havia mandado instalar os empecilhos, posteriormente retirados ao custo de aproximadamente R$ 40 mil, segundo o jornal Folha de S. Paulo. A colocação custara R$ 8,4 mil aos cofres públicos, mas a retirada teria sido custeada pela construtora responsável pela obra.

Antes mesmo que esses custos fossem conhecidos, o Senado aprovou, em 31 de março, um projeto que proíbe o uso de arquitetura urbana de caráter hostil ao livre trânsito da população de rua em espaços de uso público. De autoria do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), o PL 488/2021 altera o Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 2001). Relatada pelo senador Paulo Paim (PT-RS), a proposta seguiu para a Câmara dos Deputados com emenda que dá à futura lei o nome de “Padre Júlio Lancelotti".

Na justificativa do projeto, Contarato adverte que o episódio nos dois elevados não se caracteriza como um fato isolado. Segundo ele, muitas cidades brasileiras são palco da também chamada arquitetura defensiva ou desenho desconfortável. Uma razão apontada pelo parlamentar é a especulação imobiliária em certas áreas:

“A ideia que está por trás dessa lógica neoliberal é a de que a remoção do público indesejado em determinada localidade resulta na valorização de seu entorno e, consequentemente, no aumento do valor de mercado dos empreendimentos que ali se localizam, gerando mais lucro a seus investidores”.


Fonte: Agência Senado

Postar um comentário

0Comentários
Postar um comentário (0)