Marcílio albuquerque
Folha-PE
Cento e trinta anos depois, as memórias do poeta Manuel Bandeira parecem deixadas de lado no Recife, terra pela qual nunca escondeu sua paixão. A casa onde ele nasceu, no bairro das Graças, na Zona Norte, está fechada e sem qualquer medida de preservação da história do escritor. A ideia de transforma-la em um centro cultural até hoje não conseguiu se consolidar nas mãos do poder público. Após sofrer diversas descaracterizações, o imóvel agora foi colocado à venda. A iminência é de que um importante capítulo de suas raízes seja apagado pelo tempo. Foi no pequeno sobrado, tendo como vizinha as águas do Capibaribe, que o mestre da literatura deu os seus primeiros passos. Mais de um século depois, comércio e serviços passaram a ocupar a região, ainda recheada de boas lembranças.
“Trata-se uma perda grande para Pernambuco. Bandeira era um verdadeiro artista, um homem sensível e com uma representatividade que ultrapassa barreiras. Ter mais um espaço dedicado a sua identidade seria de extrema importância para as futuras gerações”, afirmou Márcia Mendes, gestora do Espaço Pasárgada. O casarão, na rua da União, na Boa Vista, é o registro sobrevivente de sua passagem pela Capital. Por lá, viveu parte da infância, dos seis aos dez anos. Contudo, também não faltam problemas. “Nossa estrutura física é bastante limitada. Temos apenas vinte títulos e algumas cartas escritas por ele para amigos. A casa tem problemas estruturais. Apesar de sua forte ligação com o Recife, a grande maioria das peças está no Rio de Janeiro. E a proposta de criarmos um grande acervo digital ainda não se concretizou por falta de recursos”, explicou.
Passando para a casa berço, na rua Joaquim Nabuco, é possível notar portas e janelas em madeira, com parte do telhado em formato duas águas, elementos que remontam o passado. Na fachada, uma placa traz a inscrição do “Último Poema”, um dos seus textos, versando sobre a beleza das flores e os diamantes mais límpidos. Parecia anunciar o desfecho da antiga morada. O nome Capunga, hoje usado apenas para identificar a ponte que liga o bairro da Torre, no passado se referia a antiga fundição. “Naquela época era comum os operários residirem em casas próximas ao lugar do trabalho. Pequenos comércios também iam sendo montados para atender as primeiras necessidades. A cidade evoluiu e tudo foi sendo transformado”, revelou o pesquisador José Luiz Mota Menezes.
Felipe Ribeiro/Folha de Pernambuco
Imóvel no bairro das Graças, onde o poeta pernambucano nasceu: perda histórica
Segundo ele, na casa de Bandeira funcionava uma farta quitanda de frutas e verduras. Anos depois, escolas, clínicas e escritórios passaram a ocupar o lugar. O restaurante Mafuá do Malungo, que remete a uma das publicações mais notórias do escritor, foi um dos mais marcantes. A reunião de poemas homenageia alguns dos seus grandes companheiros de estrada. “Sem projetos do poder público ou privado, nenhum tipo de museu foi criado. A tendência é de tudo desaparecer”, lamentou Menezes. Quase a totalidade das edificações da época já saíram de cena. O casario da rua Fernando Lopes, logo ao lado, ainda mantém um clima bucólico, distante da efervescência do Centro do Recife.
A região faz parte da Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico Cultural (ZEPH-4) e todo o conjunto arquitetônico da área está sobre esta chancela. Contudo, a diretora do departamento responsável, Lorena Veloso, explica que brechas na atual legislação ainda impedem um controle maior. “Ele não pode ser demolido ou submetido a qualquer tipo de reforma sem a autorização do município. No entanto, isso não impede que seus proprietários possam vendê-lo, aluga-lo ou executar qualquer tipo de atividade. Manter essa memória viva seria opcional”, explicou, sem esconder as carências na fiscalização. “Já temos notícia de que foram realizadas alterações físicas, cabendo multa. Mas, por se tratar de imóvel privado, dependemos de autorização para ter acesso e averiguar”, disse. Procurada pela Folha, a Secretaria Estadual de Cultura, assim como a Fundarpe, informaram não dispor de projeto ou investimentos alusivo à preservação da memória do poeta.
Poeta e aventureiro
Gentil e ríspido. Aplicado e desatento. Solitário e ao mesmo tempo apaixonado pelas muitas mulheres de sua vida. As visões sobre o poeta Manuel Carneiro de Souza Bandeira divergem e chamam a atenção para um homem à frente do seu tempo. Com fino espírito de observação, o professor e crítico literário embarcou em diversas empreitadas. Foi até mesmo jurado em concursos de misses. Ao longo dos 82 anos de vida, respirou a boemia carioca, mas nunca deixou de lado a sua alma pernambucana. Para o professor de linguística e especialista em literatura, André Cervinskis, uma peça tão importante da cultura não poderia ser deixada para trás. “O Estado não costuma preservar, a contento, o legado deixado por seus escritores. Falta interesse, respeito e vontade política”, disparou. O poeta, que tem em sua árvore genealógica nomes como Gilberto Freyre e João Cabral de Melo Neto, deixou pelo menos 50 títulos.
Autor de três livros sobre a trajetória de Bandeira, Cervinskis conta particularidades sobre o seu cotidiano. “Apesar de ter nascido abastado, com a família proprietária de engenhos de cana-de-açúcar, ele passou a conviver com muitas privações. Viveu por muito tempo dependendo apenas do dinheiro do pensionato, administrado pelo pai”, disse. Conforme o pesquisador, o escritor também amargou muito preconceito. “Naquela época ter tuberculose era digno de pena, as pessoas queriam distância por medo do contágio, nenhuma oportunidade era dada”, acrescentou, lembrando que ele nunca se casou ou conseguiu trabalho fixo. Para ele, Manuel Bandeira não se mostrou preocupado em se adequar a tendências, mas sim em proferir de maneira clara as emoções que desejava transmitir por meio de suas criações. “Encurtava distâncias, atingindo a alma dos leitores, logo admiradores”, ressaltou.
O escritor começou na poesia parnasiana, mas ficou marcado na literatura pela atuação no modernismo. “Os sapos” foi um dos poemas que se destacaram na sua obra, ganhando força por ter sido proferido no início da Semana de Arte Moderna, em 1922. Já em “Vou Embora pra Pasárgada”, os delírios utópicos de uma terra feliz e perfeita. Bandeira buscou uma escrita direta e simples, apesar de conhecer e utilizar muitas vezes as formas clássicas de estruturação de poemas. “Era um grande intérprete do Brasil. Um poeta que merece ser lido e faz a gente descobrir a nossa identidade, gostar da nossa língua e apreciar as raízes. Passados 130 anos, se mantém atual e completo”, avaliou André.
Para marcar a data
De 18 a 20 de Abril, o espaço Pasárgada, no Centro do Recife, promove a Semana Manuel Bandeira. O evento comemora os 130 anos do poeta e 30 anos de atividades da casa. A programação gratuita inclui palestras, exibição de curtas, encenações e o lançamento de um selo alusivo.