Mona Lisa dourado
JC Online
Placas de pousadas e restaurantes privados são comuns em Havana Velha
Foto: Mona Lisa Dourado/JC
HAVANA – “A maioria dos cubanos jamais iria embora. Quero criar minha filha no meu país. O que a gente deseja de verdade é que as condições melhorem. Ter mais o que comer e o que vestir, uma casa melhor. Algumas coisas até começaram a mudar, mas o futuro ainda é uma incógnita.” O desabafo da taxista Maria*, 38 anos, no meio de uma conversa que começou despretensiosa, me sacode da letargia pós-nove horas e meia de voo. Às 3h de uma úmida madrugada do verão caribenho, sob um calor de 28 graus, resta esfregar as pálpebras e espantar o sono. Bastam poucos minutos em solo cubano para colocar uma definitiva pá de cal sobre o principal estereótipo maniqueísta a respeito do país: o de que parte do povo daria tudo para deixar a ilha, enquanto a outra parte defenderia cegamente os êxitos da revolução de 1959. Nem tanto a Fidel Castro, nem tanto ao Tio Sam. Dali em diante, olhos e ouvidos bem abertos, inicio um intenso despertar de nove dias imersa nas contradições dessa singular república socialista latino-americana.
Apesar da curta estada, pude ouvir queixas como a de Maria ecoarem da capital ao interior de Cuba. E nem precisa provocar muito. Aos primeiros sinais de empatia, o cubano desata a falar da sua vida e das dificuldades diárias. Também de política, economia e qualquer outro assunto que se apresente. A impressão mais marcante: trata-se de um povo lutador e resistente, mas sobretudo fatigado pelas privações e ávido por consumir.
Não é para menos. São mais de 50 anos de embargo econômico, financeiro e comercial imposto pelos Estados Unidos, que impediram o acesso não só ao principal mercado mundial como ao crédito das instituições internacionais de financiamento. “Cuba sofreu e sofre uma pressão enorme, com uma situação de guerra não declarada. Por muitos anos, o bloqueio foi adotado por outros países, inclusive o Brasil (1964-1986). Pode não ser o único responsável pelo subdesenvolvimento da ilha, mas as consequências para o seu crescimento são inegáveis”, analisa o embaixador e professor do Instituto Rio Branco Samuel Pinheiro Guimarães.
Durante três décadas, o impacto do embargo pôde ser driblado devido à estreita relação com a União Soviética, de onde Cuba recebia 98% dos combustíveis e 63% dos alimentos, além de matérias-primas e outros bens. O esfacelamento do socialismo no Leste Europeu no início da década de 90, entretanto, expôs o tamanho da dependência da economia cubana de Moscou, causando uma crise sem precedentes. “Milhares de hectares deixaram de ser cultivados por falta de combustível, fertilizantes, insumos e equipamentos agrícolas. As safras açucareiras diminuíram, paralisando 70% da capacidade dessa indústria, o transporte se reduziu ao mínimo e a geração de eletricidade recuou 27%”, sintetiza o professor da Universidade de Havana Miguel Alejandro Figueras, Prêmio Nacional de Economia, uma das principais distinções da área no país.
Os efeitos são traumáticos até hoje para várias gerações de cubanos, que foram obrigados a se adaptar à redução em um terço do consumo diário de calorias e à metade de proteínas. “A caderneta de abastecimento tem o mínimo para sobreviver um mês, com frango que não dá para uma sopa”, dispara o funcionário público Ricardo*, 52, referindo-se à cesta básica mensal, e cada vez mais restrita, subsidiada pelo governo. Entre os itens, estão arroz, feijão, açúcar, café, óleo, sal, ovo, pão, frango e fósforo. Quanto aos demais produtos de uso pessoal? “Nem queira saber o que fazemos para conseguir complementar a renda”, diz, com ar enigmático.
Manter uma atividade informal em paralelo ao emprego oficial é tão comum em Cuba quanto a dobradinha rum e charuto. A venda ilegal do fumo extraviado das fábricas, aliás, não está descartada como estratégia de sobrevivência, para a qual a polícia parece fazer vista grossa nas mal iluminadas ruas de Havana.
“O cubano é um inventor, capaz de vender petróleo a árabe”, brinca o motorista de ônibus José*, fazendo referência ao conhecido “jeitinho” local na hora de lançar mão da criatividade para driblar o baixo poder de compra dos salários.
“O cubano é um inventor, capaz de vender petróleo a árabe”, brinca o motorista de ônibus José*, fazendo referência ao conhecido “jeitinho” local na hora de lançar mão da criatividade para driblar o baixo poder de compra dos salários.