A ficção profética de Orwell

Antônio Assis
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Eduardo Sol
Folha-PE
Há 65 anos, o escritor George Orwell, nascido na Índia e filho de ingleses, imaginou uma sociedade completamente vigiada dentro de um sistema de governo totalitário, no clássico romance “1984”, cuja sombria data fictícia também faz 30 anos. Nada escapava aos olhos do “Grande Irmão” (não por acaso, “Big Brother”, no original). Não passou pela cabeça do autor - que vivenciara, no calor dos acontecimentos, os totalitarismos comunista e nazista -, que essa “vigilância” ganharia grandes proporções até mesmo em regimes democráticos: cada passo, viagem, ligação celular, refeição usando cartões ou evento que participamos estamos nos expondo, muitas vezes sem a consciência disso. A participação online de torcedores nesta Copa do Mundo é uma prova: um recorde. As filmagens dos saqueadores roubando lojas em Abreu e Lima, em maio, durante a greve da PM (e depois tendo de devolver os produtos), e o escandaloso programa de espionagem dos Estados Unidos, que não perdoa nem chefes de Estado e empresas privadas, são outras faces do mesmo fenômeno: nunca fomos tão observados. Assim, uma das “profecias” do livro se concretizou; cada um é vigia e vigiado, tanto em nossas imagens reais quanto em nossos dados, que é o que acabamos nos tornando no atual mundo digital.

Em “1984”, o onipresente “Grande Irmão” é o rosto que representa o controle do Partido sobre a fictícia Oceânia, onde vive o antiherói Winston Smith, protagonista do romance, uma das principais distopias do século 20: a ideia de um mundo que, após os horrores da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, não poderia dar certo. Felizmente, o pior não aconteceu. A Oceânia, sempre em luta com a Eurásia e a Lestásia, surgiu após guerras nucleares, algo vivo em junho de 1949, quando o livro foi publicado. Quatro anos antes, o mundo vira o poder de bombas atômicas jogadas pelos americanos sobre o Japão, provocando o fim da guerra (o horror nazista capitulara meses antes). O enredo é simples: funcionário do Ministério da Verdade (que tem como função reescrever a história, alterando-a com mentiras) compra um diário numa loja de quinquilharias e começa a escrever o que pensa e o que se lembra, cometendo assim um grave crime: raciocinar. Conhece Júlia, uma jovem rebelde que acha que pode desafiar as normas através do sexo. Vivem um clandestino caso romântico, até serem presos e torturados no Ministério do Amor. Acabam dedurando um ao outro e transformados em medrosos cidadãos pela máquina repressora.
Orwell lutou na Guerra Civil Espanhola, desiludindo-se com a esquerda dogmática soviética. Por isso, desde cedo se atribuiu ao livro uma crítica ao stalinismo. O Grande Irmão só poderia ser Stalin, enquanto o inimigo do Partido, Goldstein, com barbicha e óculos, Trotsky, herói bolchevique que caíra em desgraça. O autor vivia às turras com o Partido Trabalhista inglês e, em 1945, publicara a poderosa novela “A Revolução dos Bichos”, fábula sobre os males do comunismo (isso antes de o mundo conhecer a real intensidade dos crimes stalinistas). Houve quem apontasse em “1984”, porém, uma crítica ao nazismo e seu ideal higienista. Orwell não teve como contribuir para o debate: doente, terminou o livro pressionado e morreu meses depois. Os ecos do que escreveu, contudo, ainda se fazem sentir; basta andarmos numa rua central, usarmos um smartphone ou, simplesmente, comprarmos um sorvete no shopping: o Grande Irmão ainda observa.
Orwell acertou:
Vigilância: Um mundo cada vez mais vigiado era o princípio que regulava a vida no romance. No caso, sempre pelas teletelas e o rosto do Grande Irmão. Com câmeras em alta resolução, as principais cidades do mundo vivem exatamente isso. Pelo menos, nos espaços públicos.
Teletelas: Finas, grandes e posicionadas nas paredes, eram pré-conceitos das TVs planas, de plasmas, LCD ou LED. Algumas, hoje, até podem não apenas ser vistas, como verem, através de conexão à internet e câmara, tal qual em “1984”.
Novafala: No romance, um idioma artificialmente criado para que as pessoas pensassem menos. Seu conceito lembra as abreviações usadas na internet.
Mas passou longe:
Totalitarismo: Embora ainda haja ditaduras, algumas bem duras, como a fechadíssima Coreia do Norte, o totalitarismo não saiu vencedor no confronto com a democracia. Até países que ainda não a têm plenamente, como o Irã, anseiam por isso.
Guerra Nuclear: Toda a situação do romance se passa após alguns confrontos nucleares, que, na época de sua publicação, 1949, era algo bem possível. Hoje, embora a atenção continue, um confronto atômico é pouco provável. Já os acidentes causam medo real.

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