FOTO: Pesquisadores-mergulhadores Alberto Nava e
Susan Bird examinam o crânio encontrado na caverna submersa Hoyo Negro, em
pesquisa apoiada pela National Geographic Society. Crédito: Paul
Nicklen/National Geographic
Herton Escobar / O Estado de S. Paulo

Os primeiros habitantes das Américas chegaram ao continente entre 26 mil e 18
mil anos atrás, atravessando o estreito da Bering (entre a Rússia e o Alasca)
num período glacial em que o nível do mar estava bem mais baixo e havia uma
“ponte” de terra firme exposta, ligando a Ásia e a América do Norte. Isso é
praticamente um consenso dentro da ciência, baseado em evidências fósseis,
moleculares e paleontológicas e arqueológicas. Mas uma grande dúvida persiste:
Quantas ondas migratórias passaram por essa ponte de terra, chamada Beríngia,
antes de ela se “fechar” e ficar submersa novamente? Em outras palavras: Os
primeiros seres humanos que chegaram às Américas e deram origem aos povos
ameríndios que já estavam aqui antes de Colombo e Cabral são descendentes de uma
única população genética, ou mais de uma?
A dúvida que atormenta os cientistas e historiadores deve-se ao fato de que a
morfologia dos crânios mais antigos das Américas (dos chamados paleoamericanos,
com cerca de 9 mil anos de idade) não se “encaixa” com a dos ameríndios
modernos, nem com a dos povos siberianos nem com a de outros povos asiáticos que
poderiam ser, teoricamente, seus ancestrais.
Mas eis que uma luz no fim do túnel — ou melhor, no fim de uma caverna —
acaba de aparecer para esclarecer a questão (ou confundi-la ainda mais,
dependendo de como o trabalho for avaliado pela comunidade científica nos
próximos anos; vamos ver). Pesquisadores descobriram, no fundo de uma caverna
mexicana chamada Hoyo Negro, o fóssil de uma menina de aproximadamente 15 anos
de idade, cujas datações por radiocarbono indicam ter vivido cerca de 12 mil
anos atrás. O crânio dela tem a morfologia característica dos paleoamericanos —
diferente dos ameríndios e siberianos modernos. O DNA mitocondrial extraído de
seus dentes (muito bem preservados pelas características da caverna), porém, é
muito semelhante ao dos ameríndios modernos, indicando que ela possui uma
relação direta de ancestralidade com eles.
O que se pode inferir, portanto, é que, apesar da morfologia cranial
distinta, os paleoamericanos são ancestrais diretos dos ameríndios (em vez de
representar uma população distinta). O que, por sua vez, reforça a tese de que
as Américas foram povoadas por uma única onda migratória da Beríngia. As
diferenças morfológicas que se observa hoje, segundo os cientistas, teriam
surgido como modificações adaptativas ao novo ambiente das Américas, depois que
a população original da Eurásia atravessou a ponte e se espalhou pelo novo
continente.
O estudo, liderado por James Chatters, da Applied Paleoscience and DirectAMS,
e apoiado pela National Geographic Society, está publicado na revista
Science: http://www.sciencemag.org/content/344/6185/750
O local onde o fóssil foi descoberto é tão espetacular quanto a descoberta em
si. Hoyo Negro é uma caverna submersa, de 62 metros de diâmetro, acessível
apenas por mergulhadores técnicos altamente especializados, que precisam
percorrer mais de 600 metros de túneis para chegar lá. Hoje, a base do salão
está quase 50 metros abaixo do nível do mar, mas quando a menina paleoamericana
estava viva, ele era uma caverna seca, como provam as estalagmites e a camada de
guano (fezes de morcego) que cobrem o seu chão. A menina, assim, como vários
animais e outros seres humanos da época, provavelmente ficou presa e acabou
morrendo dentro do sistema de cavernas, chamado Sac Actun, que foi inundado
quando as geleiras ao norte derreteram e o nível do mar voltou a subir, entre 4
mil e 10 mil anos atrás. Imagine só!
FOTO: A caverna Hoyo Negro, fotografada de baixo,
por meio de uma técnica conhecida como “pintando com luz” (30 segundos de
exposição). Um dos túneis de acesso pode ser visto no topo da caverna, à
esquerda. Crédito: Roberto Chavez Arce
Um vídeo da pesquisa pode ser visto aqui: http://video.sciencemag.org/videolab/chatters