Revista do Brasil
Não começou, mas se consolidou com um discurso brasileiro nas Nações Unidas. Em setembro de 2013, a presidenta Dilma Rousseff usou os microfones da 68ª Assembleia Geral da ONU para criticar duramente a espionagem realizada pelos Estados Unidos sobre a internet em todo o mundo. Muitas articulações políticas e diplomáticas depois, o país receberá em abril a NetMundial, cujo nome oficial já explica a que veio. Será uma Conferência Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança na Internet.

Dilma não gostou de saber de tamanho escândalo pela imprensa. Primeiro, exigiu desculpas públicas do presidente Barack Obama pela interceptação, que é ilegal, e garantias fiáveis de que tais monitoramentos não voltariam a acontecer. Como nem as retratações nem os compromissos vieram, ela cancelou a viagem oficial que faria a Washington em outubro. E aproveitou a mais importante reunião de chefes de Estado que ocorre anualmente em Nova York para denunciar a espionagem e propor uma ação global contra os riscos do monitoramento da internet.
“É o momento de criarmos as condições para evitar que o espaço cibernético seja instrumentalizado como arma de guerra, por meio da espionagem, da sabotagem, dos ataques contra sistemas e infraestrutura de outros países”, discursou Dilma, lançando as bases de uma proposta para transformar a governança da rede mundial de computadores.
“Precisamos estabelecer mecanismos capazes de garantir princípios como: 1) liberdade de expressão, privacidade do indivíduo e respeito aos direitos humanos; 2) governança democrática, multilateral e aberta, exercida com transparência, estimulando a criação coletiva e a participação da sociedade, dos governos e do setor privado; 3) universalidade, que assegure o desenvolvimento social e humano e a construção de sociedades inclusivas e não discriminatórias; 4) diversidade cultural, sem imposição de crenças, costumes e valores; e 5) neutralidade da rede, ao respeitar apenas critérios técnicos e éticos, tornando inadmissível restrições por motivos políticos, comerciais, religiosos ou de qualquer outra natureza.”
Algumas semanas depois, o governo brasileiro seria procurado por executivos que administram a rede para conversar sobre a realização de uma conferência que discutisse globalmente essas cinco diretrizes. No início de outubro, Dilma recebeu em Brasília Fadi Chehadé, chefe da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (Icann), entidade responsável pela concessão de domínios e endereços na rede, uma espécie de zelador da internet.
Na conversa, Chehadé disse que o Brasil havia assumido liderança global no tema da governança da internet, e que o modelo atual, centralizador demais, precisava evoluir. O executivo pediu empenho do governo brasileiro na busca por soluções práticas para recuperar a confiança das pessoas na segurança da rede. O discurso de Dilma e sua receptividade pelos grupos que administram o sistema foram os últimos tijolos do alicerce que viabilizaria a conferência.
Arena paralela
A NetMundial reunirá nos dias 23 e 24 deste mês de abril representantes de governos, empresas de tecnologia, sociedade civil, universidades e grupos técnicos de aproximadamente 150 países. O objetivo é construir acordos globais para transformar em realidade os princípios defendidos pela presidenta na ONU. O principal deles, como já fica subentendido pelo nome da conferência, é descentralizar a administração da internet.
A rede tem sido controlada pelos Estados Unidos desde sua criação: apesar de administrar todo o funcionamento da rede, o Icann é subordinado ao Departamento de Comércio norte-americano. Além disso, está sediado na Califórnia, submetendo-se à legislação do país. Mas isso pode mudar depois do NetMundial. Aliás, já começou a mudar.
Em março, os Estados Unidos comunicaram oficialmente que poderiam abrir mão do controle exclusivo do Icann e repassá-lo para uma entidade multissetorial internacional. Como constituir, organizar e formatar essa entidade deverá ser um dos pontos principais das discussões em São Paulo. Até porque Washington já alertou que não aceitará passar a administração da internet para outro governo ou grupo de governos.
A pluralidade que pode democratizar a administração da internet em todo o mundo já é uma realidade no Brasil. Aqui, a rede é gerida pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br), que reúne representantes do governo, empresas, sociedade civil, academia e grupos técnicos.
“O CGI.br passou a ser um modelo para a gestão global da internet por abrir espaço à participação de todos os setores”, avalia o ativista digital gaúcho Marcelo Branco. “Mas ainda não se sabe como será encaminhada essa transição. É exatamente isso que será discutido na NetMundial.”
O país ainda pode servir de modelo para um novo sistema de administração da internet caso consiga aprovar no Congresso, antes da conferência, o Projeto de Lei 2.126, de 2011, conhecido como Marco Civil da Internet. Em 25 de março, o texto passou na Câmara e seguiu para o Senado.
“Inspirado na proposta brasileira, o próprio criador da web, Tim Berners-Lee, sugeriu que fosse elaborado um marco civil global, que ele chamou de carta magna da internet”, continua Branco. “O sucesso da NetMundial será uma vitória diplomática para o Brasil.”
O ativista lembra, porém, que a liderança do país no tema não começou com o discurso de Dilma Rousseff. A intervenção presidencial na ONU teria sido apenas a ofensiva final. “Em 2003, na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, em Genebra, a delegação brasileira já havia defendido que a internet não podia mais ser governada unilateralmente”, argumenta Branco, que compareceu ao encontro.
“Nossa posição foi apoiada pela Argentina, pelos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e pela União Europeia, que concordavam em que os Estados Unidos não tinham direito de controlar sozinhos a internet.” Washington, porém, bloquearia qualquer discussão sobre a governança global da rede. Até agora. “As denúncias de espionagem, as reações internacionais e as críticas de Dilma nas Nações Unidas aumentaram a pressão e construíram uma conjuntura favorável às mudanças.”
Cerca de 800 pessoas terão acesso ao Grand Hyatt Hotel para as atividades do NetMundial. Mas há muito mais gente disposta a participar, sobretudo na sociedade civil. Para arrebanhar a contribuição de mais gente e enraizar as discussões, o governo brasileiro realizará a Arena NetMundial, evento paralelo ao encontro oficial, aberto ao público.
“A conferência tem potencial para se tornar o evento político mais importante do ano”, avalia Ricardo Poppi, coordenador-geral de Novas Mídias e Outras Linguagens de Participação da Secretaria-Geral da Presidência da República. “Vamos debater temas como direitos humanos, apropriação da rede, espionagem e segurança. Algumas propostas serão posteriormente apresentadas à NetMundial.”