Quando, numa sociedade, a maioria de suas categorias sentem-se prejudicadas pelas leis e pelos costumes vigentes, apelam dos costumes para a razão e das leis para a natureza, afirmava Voltaire, morto antes da queda da Bastilha e sem imaginar o que aconteceria nas estepes, mais de um século depois. É assim que eclodem as revoluções sociais, como na França em 1789 e na Rússia em 1917. Depois, a vida segue seu curso imprevisível e desemboca em situações completamente inusitadas, como as que geraram Napoleão e Stalin. O importante nos movimentos sociais, no entanto, é atentar para o ponto de ebulição lá no começo do processo, quando o passado se desfaz em mil pedaços e o futuro não pode ser imaginado.
Estaríamos chegando ao prenúncio da ruptura promovida pelos diversos segmentos oprimidos e tornados insurgentes, diante da opressão não mais tolerada da ordem política e social anterior? Pode ser, na dependência de as manifestações de rua das últimas semanas terem sido apenas o soluço de um organismo maltratado ou, no reverso da medalha, o sinal do início de uma reviravolta profunda nos costumes e nas leis até então vigentes?
Respondam os sociólogos, os marqueteiros e até os videntes de sempre, mas a verdade é de podermos ter chegado ao limiar de mudanças profundas. Ao esgotamento de ser o país dominado por uma classe política corrupta, por um sistema econômico conduzido pela ânsia do lucro a qualquer custo, por instituições incapazes de produzir justiça, equidade, serviços e felicidade geral. Esses componentes deteriorados se esgotaram, ainda que se ignore como e pelo que serão substituídos ou sucedidos. É um fato a falência dos valores e das regras até então impostas ao cidadão comum, não apenas no Brasil, mas no planeta inteiro.
O brado “basta!”, de “chega!”, ecoa do Hemisfério Norte antes rico até o Hemisfério Sul, pretensamente em desenvolvimento. Lá e cá o povo se insurge, verificando perigosamente como é fácil intimidar os responsáveis pelos privilégios e a opressão que a todos assola. Não se reivindica mais liberdade, pelo menos no Brasil, porque ela acaba de ser conquistada nas ruas. O recuo dos donos do poder é flagrante quando se mostram incapazes de conter os protestos generalizados, tentando absorve-los e travesti-los, apresentando-os como democráticos, através da mentira de evidenciarem o acerto de suas políticas.
Não é nada disso. As manifestações se fazem contra eles, governantes, parlamentares, empresários, especuladores, patrões, esbirros, dirigentes, donos da terra, reitores e quantos outros exercem funções de controle sobre a massa. Todos recebem a rejeição por conta de tantas décadas de submissão imposta à sociedade como um todo, assim como a cada uma das suas principais categorias, isoladamente.
Vale repetir, os dias atuais podem exprimir apenas um soluço, mais uma dessas costumeiras reações que não progridem, esgotam-se e se desfazem como bolhas de sabão. Mas se não for assim? Se estivermos na ante-sala de surpresas imprevistas e inusitadas, amargas ou felizes? Fica para as próximas gerações verificar se redundarão em Napoleão ou Stalin, se é que estamos mesmo assistindo a mais uma dessas mutações que apenas a Humanidade pode produzir…