Vale mergulhar um pouco mais fundo nas imagens que assustaram o Brasil, dias atrás, aliás, ainda não desaparecidas de nossas telinhas, mesmo tendo passado o mais agudo das manifestações e protestos. Por que o povo foi para as ruas, em especial os jovens, quase todos pacificamente, apesar das depredações, queima de carros, incêndios, invasão de lojas comerciais e destruição de patrimônio público e privado, perpetrados por minorias de vândalos.
Qual a razão de multidões de jovens irem para as ruas, enfrentando a polícia e atropelando tudo o que encontram pela frente? Tornando difícil, às vezes quase impossível a vida do cidadão comum, não apenas no Rio e São Paulo, mas em montes de cidades. Por que?
É preciso notar que o protesto vem do povo, começando pelos jovens, em especial da classe média, insurgidos contra a má qualidade dos serviços públicos, contra a corrupção e contra a exclusão deles nas decisões nacionais, estaduais e municipais.
Não dá mais para dizer que essa monumental revolta é outra solerte manobra do comunismo ateu e malvado. O comunismo acabou. Saiu pelo ralo. A causa do que vai ocorrendo repousa precisamente no extremo oposto: trata-se do resultado do modelo neoliberal que exclui as massas e privilegia as elites. Da consequência de um pérfido quadro econômico e político que funciona para as elites e os ricos, relegando os demais à desimportância e ao abandono.
É bom não esquecer: sempre que se registra uma crise econômica nas nações neoliberais, a receita é a mesma, seja na França ou na Grécia, em Portugal ou na Espanha: medidas de contenção anunciadas para reduzir salários, cortar gastos públicos, demitir nas repartições e nas fábricas, aumentar impostos e taxas. Esse é o perigo que nos ronda, porque sem dúvida os protestos e manifestações dizem respeito às dificuldades porque passa a população. Parece bom tomar cuidado
Fica evidente não se poder concordar com a violência. Jamais justificá-la. Mas explicá-la, é possível. Gente largada ao embuste da livre concorrência, explorados pelos mais fortes, tiveram como primeira opção emigrar para regiões e cidades mais ricas, para encontrar emprego, trabalho e meio de sobrevivência, bem como transportes, educação, saúde e segurança públicas. Invadiram as ruas.
Preparem-se os neoliberais. Os protestos não demoram a atingi-los diretamente. Fica impossível empurrar por mais tempo com a barriga a divisão do país entre inferno e paraíso, entre cidadãos de primeira e de segunda classe. Segunda? Última classe, diria o bom senso.
Como refrear a multidão de jovens sem esperança, também de homens feitos e até de idosos, relegados à situação secundária em pleno século XXI? Estabelecendo a ditadura, corolário mais do que certo do neoliberalismo em agonia? Não vai dar, à medida em que os reclamos se multiplicam e a riqueza se acumula. Explodirá tudo.
Difícil não trazer esse raciocínio para o Brasil. Hoje, 40 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza, sobrevivendo com a metade desse obsceno salário mínimo que querem elevar para 540 reais. Apesar do Bolsa-Família. Os bancos lucram bilhões a cada trimestre, enquanto cai o poder aquisitivo dos salários. Isso para quem consegue mantê-los, porque, apesar da propaganda oficial, o desemprego continua presente. São 15 milhões de desempregados em todo o país, ou seja, gente que já trabalhou com dignidade e hoje vive de biscates, ou, no reverso da medalha, jovens que todos os anos gostariam de entrar no mercado sem nunca ter trabalhado.
Alguns ingênuos imaginam que o assistencialismo resolve a questão, mas ele só faz aumentar as diferenças de classe. É crueldade afirmar que a livre competição resolverá tudo, que um determinado cidadão era pobre e agora ficou rico. São exemplos da exceção, jamais justificando a regra de que, para cada um que obtém sucesso, milhões continuam de mãos abanando.
Seria bom o governo Dilma olhar em volta. O rastilho pegou e não será a polícia que vai apagá-lo. Ainda que consiga, aqui e ali, reacenderá maior e mais forte pouco depois.
A globalização tem, pelo menos, esse mérito: informa em tempo real ao mundo que a saída deixada às massas encontra-se na rebelião. Os que nada tem a perder já eram maioria, só que agora estão adquirindo consciência, não só de suas perdas, mas da capacidade de recuperá-las através do grito de “basta”, “chega”, “não dá mais para continuar”.
Não devemos descrer da possibilidade de reconstrução. O passado não está aí para que o neguemos, senão para que o integremos. O passado é o nosso maior tesouro, na medida em que não nos dirá o que fazer, mas precisamente o contrário. O passado nos dirá sempre o que evitar.
Evitar, por exemplo, salvadores da pátria que de tempos em tempos aparecem como detentores das verdades absolutas, donos de todas a soluções e proprietários de todas as promessas.